Sol Nascente
Eu não sei onde estive – nem por quanto tempo – perdida dentro de mim mesma. Estava vagamente consciente do ar frio – cada vez mais frio – passando por mim, do som dos passos firmes e rápidos de Jacob, de sua respiração estável em minha pele. Não sei o que me trouxe, aos poucos e desorientadamente, de volta a meu próprio corpo. Sentia-me uma estátua viva, uma pedra rígida com um coração pulsante. A pele de Jacob era um contraste confortável a minha, como uma ligação com o mundo dos vivos, uma parte minha que sobreviveu ao congelamento. O coração dele impulsionava o meu a bater, embora num ritmo desigual.
Eu não sabia onde estávamos, não sabia para onde ele estava me levando, mas eu não me preocupei com isso. Eu confiaria minha vida a Jacob, e sabia que ele zelaria por ela com a sua própria. Por algum tempo só me concentrei nos sons da noite ao nosso redor, os ecos que deixávamos ao passar por entre as árvores e arbustos. Então, tão subitamente que demorei a perceber, Jacob parou e me baixou ao chão. A luz de postes incidia por entre as árvores a alguns metros à frente. Jacob me colocou deitada entre as folhagens murchas de um abeto, às sombras das luzes fracas de alguma rua deserta, em alguma cidade ao norte. Tentei encontrar minha voz. Tentei me colocar de pé, me mover, reagir de algum modo àquela paralisia de membros e mente, mas um torpor gélido se instaurou sobre mim, e ele era infinitamente mais forte que eu, ou minha vontade de reagir.
- Ness, olhe pra mim. – Tentei obedecer. Deixei as mãos quentes e grandes me guiarem e encontrei um par de olhos castanhos enegrecidos pelas sombras da noite. –Eu vou te deixar aqui por um minuto. Volto antes que você perceba que saí. Fique quieta e não saia daqui. – Ele permaneceu encarando meus olhos vidrados por um momento e depois saiu, me deixando no mais intenso frio que já experimentei, embora a temperatura externa nada tivesse a ver com isso. Uma pequena parte de mim queria saber onde ele tinha ido, mas era pequena demais para vencer toda a névoa em minha mente. Uma lanterna de pilhas fracas.
Forcei meus pensamentos a retroceder, tentei me lembrar de quem eu era. Flashes e rostos acendiam e se apagavam em meus pensamentos turvos. Uma sala ampla e iluminada, a música de um piano ao canto, o som de risadas melodiosas. Uma cabana entre árvores, um par de olhos âmbar me olhando ternamente, um aroma quente e amadeirado se misturando à floresta ao redor da praia. Todas as coisas que me faziam quem eu era foram surgindo e brotando em minha mente. Meus pais, minha família, a tribo que, de alguma forma fazia parte de mim. O amor que eu sentia por ele. Ele, que de tantas formas contribuiu para o que eu era hoje, que de tantas maneiras, salvou o dia. Ele, que me salvou de mim mesmo.
O barulho de pneus derrapando contra o asfalto, o vidro se partindo. Dois tiros ecoando na noite, três corpos estendidos no chão, o sangue em minhas mãos. Lembrar foi mil vezes pior do que sucumbir à letargia. O peso da culpa e da vergonha me atingiram em cheio no peito. Um soco de aço em meu estômago. Um grito agudo e desesperado ecoou nas árvores e se estendeu até a rua deserta. Foi só quando arfei, tentando encontrar o ar que desaparecia de meus pulmões, que compreendi que o grito saíra de minha boca.
Jacob reapareceu entre os galhos um segundo depois. Ele estava reclinado protetoramente sobre mim, murmurando palavras tranqüilizadoras, mas eu só podia senti-lo distante de mim, como se eu nunca mais pudesse alcançá-lo. Senti meu corpo deixar o solo e logo percebi que cruzávamos a margem da floresta, encontrando a luminosidade fraca e amarelada das luzes dos postes. O vento corria livremente pela rua deserta. Fora da proteção das árvores, eu pude sentir a leve garoa gélida bater em meu rosto. Meu corpo era um objeto sem peso, inerte nos braços quentes de Jacob. O céu estava imerso em total escuridão, embora estivesse inquieto, nenhuma nuvem aparecia para reivindicar o movimento hostil acima de nossas cabeças. Um clarão resplandecente incidiu daquele céu imaculado e um estrondo feroz estremeceu o solo quando paramos em frente à última casa da rua.
***
Quando a porta de carvalho escuro se fechou atrás de nós, toda movimentação daquela noite escura e tempestuosa cessou, deixando um silêncio agourento nos envolver no que me pareceu ser um hall de entrada. Não havia nenhuma luz ali, exceto os clarões momentâneos dos relâmpagos, que penetravam as cortinas rendadas da pequena sala à nossa frente. Tentei focar meus olhos em alguma coisa ao redor, encontrar algum indício de que eu estava de volta à La Push, mas nada ali era familiar a mim. O silêncio que zumbia em meus ouvidos não se estendia à minha mente, as lembranças recentemente despertas estavam fervendo dentro de mim, borbulhando como um caldeirão prestes a transbordar. Jacob cruzou a sala e um cheiro de cinzas e madeira seca pairou no ar, devia haver alguma lareira por ali. Os degraus de uma escada estreita rangeram quando Jacob nos conduziu ao andar superior. Onde estávamos? Por que Jacob me trouxe aqui? Perguntas que eram apenas ecos fracos no meio do turbilhão de pensamentos e imagens em minha mente. Aquela bagunça estava me deixando tonta, sonolenta e desorientada dentro do meu próprio corpo. Outra porta se abriu no fim do que me pareceu ser um corredor vazio e estreito. Um cômodo mais amplo e arejado se estendeu à nossa frente, senti pelo deslocamento de ar ao passarmos que ali havia poucos móveis e estava desabitado há algum tempo. Havia poeira e umidade no ar.
Jacob me colocou sobre os lençóis frios da cama, empilhou alguns travesseiros e me deitou.
Ouvi o baque oco das mochilas batendo no chão. Fechei meus olhos, temendo o que veria se os mantivessem assim por muito tempo. Eu estava com medo de dormir, não queria sonhar com aquela estrada, com aqueles homens, com o sangue que ainda manchava minhas roupas e meu rosto, cujo gosto ainda permanecia em minha boca. Não queria ficar ali, vendo Jacob cuidar de mim como se eu fosse uma boneca frágil, vendo-o zelar por meu sono enquanto segurava minhas mãos sujas de sangue seco. Mas eu não conseguia me mover, apesar do torpor ter-se esvaído e deixado para trás aquelas imagens detestáveis, eu ainda não conseguia fazer meu corpo me obedecer. Até mesmo respirar era um esforço contínuo e árduo, e minhas últimas energias estavam sendo destinadas a me manter acordada. Jacob andava de um lado a outro do quarto, revirando gavetas e armários. Ele acendeu algumas velas e as distribuiu pelo cômodo, pela primeira vez desde o acidente eu pude ver seu rosto, e isso me ajudou a me manter desperta. Ele não percebeu meu olhar, seguindo-o para todos os lados, depositando nele minhas últimas forças – minhas últimas esperanças. Observei ele apanhar uma toalha e desaparecer por uma porta à esquerda, segundos depois o barulho de água quebrou o silêncio e se misturou com a chuva que martelava o vidro atrás das cortinas. Uma luz fraca transpassou a porta entreaberta e se juntou à luz amarelada e trêmula das velas espalhadas pelo quarto. Jacob parou no portal recém iluminado e me olhou, seu rosto estava envelhecido, um cansaço impertinente pesando em suas pálpebras. Eu o estava esgotando com meu jogo de gato e rato, caçando um fantasma, perseguindo uma intuição. Estava obrigando-o a permanecer longe da família, a perder os últimos anos de seu velho pai, estava obrigando-o a assistir meus espetáculos bizarros de alucinações e assassinatos. A sombra de culpa que pairava sobre mim ganhou toneladas a mais ao ver Jacob tão cansado e triste. Era como se seu pesar se unisse ao meu, como gotas de óleo sobre a água, impossível de se diluir. Ele forçou um sorriso nos lábios que não alcançou seus olhos exaustos, ficou ali me olhando por minutos intermináveis até que se aproximou da cama, arrastando os pés. Sentou-se a meu lado e pegou minhas mãos. Eu tive vontade de vomitar ao vê-lo se aproximar de mim e me tocar, tinha nojo de mim mesma por deixá-lo me tocar, me sentia indigna de seu toque. Ele parecia tão pesaroso por meu estado, que de início pensei que talvez ele também estivesse com nojo de mim. O calor inundou minha garganta e as lágrimas turvaram minha visão. Era um nó incapaz de ser dissolvido, uma tristeza e desesperança que transpunham o limite da razão. Nada pude fazer para conter as lágrimas, e como a grito na floresta, não percebi os gemidos e soluços escapando de minha garganta. Jacob me abraçou e a sensação de seus braços me envolvendo fez meu egoísmo falar mais alto que minha vergonha por deixá-lo me tocar.
- Shhhh… Está tudo bem Ness. – Jacob me balançava nos braços, como se estivesse ninando um bebê com medo do escuro. – Shhhh… Vai passar, vai passar.
Eu devia saber, devia ter imaginado que seria assim. Quando você cresce, as coisas a sua volta também aumentam de tamanho. Os sentimentos se ampliam, as dores são mais intensas, os problemas se tornam mais difíceis, tudo muda quando você muda, e nos últimos dias, eu mudei tão rápida e radicalmente que não era capaz de me reconhecer. Não sabia o que esperar do dia seguinte, estava inteira e completamente perdida dentro de mim mesma, agarrando-me à única coisa que me fazia sentir quem eu era. Jacob Black.
Os soluços diminuíram ao ponto de me permitir respirar, meu rosto estava molhado e meus olhos inchados e turvos. Jacob tirou meus tênis, desceu o zíper do meu casaco, enquanto trabalhava, murmurava planos para nós. Ele disse que queria conhecer Paris no inverno e visitar o tal do Louvre, disse que iríamos ao México tomar tequila e comer tortillas e ele desafiaria Emmet a pular de Bungee Jump sem a corda. Jacob sorria para mim, e era difícil resistir às idéias que ele plantava em minha mente. Uma realidade muito distante de mim.
Desabotou meu jeans rasgado e sujo e o deslizou por minhas pernas. Jogou-o com minhas meias na pilha de roupas sujas no chão. Eu o olhava, absorvendo cada palavra que saía de seus lábios, eu queria bebê-las, para que ficassem dentro de mim por mais tempo, e afogassem as vozes insistentes que habitavam as paredes do meu cérebro. Ele me pegou no colo e enquanto me conduzia ao banheiro me entreteu com uma história de como sua mãe tinha que obriga-lo a tomar banho, ele corria por La Push o dia todo com Embry e Quil e ficava muito sujo, era um garotinho magricela e descabelado que adorava carros. Tão diferente desse homem que, uma vez se apaixonou por uma jovem e a perdeu para um vampiro, tão distante do alfa quileute que desertou de sua tribo para seguir a filha mestiça da mesma jovem que ele amou – a vampira que ele agora despia e mergulhava numa banheira de água morna, afim de lavar o sangue ressecado de sua pele de mármore. Quantas voltas mais esse mundo poderia dar? Quantas vezes mais nós nos olharíamos no espelho e desconheceríamos a imagem que nos encara? Jacob mudou desde então, será que ele me amaria depois de todas a minhas mudanças – tão perturbadoramente violentas? Quem seria Renesmee Cullen depois dessa noite?
A água morna relaxou meus músculos rígidos, aos poucos meu corpo foi esquentando e eu agradeci Jacob mentalmente. Ele esfregava meus braços e minhas costas com uma bucha de banho, cujas cerdas ficaram avermelhadas com o sangue que se desprendia de minha pele. Eu estava tão absolutamente devastada, que nem mesmo senti vergonha de estar nua na frente de Jacob. A medida que meu corpo relaxava, a sonolância me atingia com mais intensidade.
Jacob sentou na beirada da banheira de louça branca e me ajudou a terminar o banho, sempre alimentando uma conversa agradável para preencher o silêncio constrangedor.
Suas mãos alisaram meu rosto, pressionando levemente minhas bochechas, meus olhos e meus lábios. A água me ajudou a pensar mais calmamente e a voz de Jacob mantinha minha mente ocupada. Em um passado não tão distante, ou em algum futuro incerto, em qualquer outro momento, qualquer outro ângulo que eu olhasse aquela situação, eu veria algo diferente daquilo. Mas agora, nesse momento, eu só conseguia ver a doçura e delicadesa com que Jacob cuidava de mim. Todos os outros ângulos estavam eclipsados por esse carinho quase paternal que emanava dele. E Deus, como eu o amava! E como eu me sentia menor que esse sentimento, como se meu corpo – meu coração – fosse pequeno demais para suportar as proporções de algo que parecia inflar a cada dia.
Ele me colocou na cama, vestindo um shorts e uma regata de algodão – que eu percebi que não eram minhas. Eu definitivamente estava me sentindo melhor, mais leve e mais controlada. Ele me enrolou em um edredon e sentou-se a meu lado, esperando meu cansaço me vencer. Eu queria dizer tantas coisas para ele…mas tinha medo de despertar daquela leve calmaria que se instalou em mim. Arrisquei uma pergunta inofensiva:
- Onde estamos? – Minha voz saiu rouca e fraca. Jacob sorriu ao me ver mais sóbrea.
- Não sei bem que cidade é essa, deve ser na divisa com o Canadá. Também não sei de quem é essa casa, apenas invadi a primeira casa vazia que encontrei. – Ele não pareceu envergonhado em dizer isso, parecia indiferente a qualquer fator externo àquele quarto.
Ele se levantou após alguns minutos de silêncio, beijou o alto de minha cabeça e sussurrou:
- Volto logo. Você vai me ouvir no chuveiro. Quer que eu fique até você dormir? – Acenei negativamente com a cabeça e forçei um leve sorriso para encorajá-lo. Quando ele saiu, fiquei examinando o cômodo a minha volta. A cama em que eu estava era grande, a cabeceira era adornada com formas que imitavam ramos de folhas e flores esculpidas na madeira maciça. Havia uma penteadeira no mesmo estilo em frente a cama, recostada na parede oposta. Um espelho grande e suntuoso fazia reflexo às velas na cabeceira da cama, e quadros, no mínimo cinco quadros de temas diversos espalhados pelas paredes do quarto. Era uma decoração incomum para os humanos modernos. A chuva havia se transformado numa garoa fina, e por um instante eu só ouvi o vento sacudindo as árvores do outro lado da rua. Jacob saiu do banheiro chacoalhando os cabelos, o que me fez lembrar de Rose, implicando com os modos “caninos” de Jacob. Ele vestia uma calsa branca de malha que ficou um pouco curta para seu tamanho, a luz das velas acentuou o tom avermelhado de sua pele e fez o branco se contrastar fortemente. Ele surpreendeu meu olhar e se aproximou.
- Hey, ainda acordada? – Eu não conseguia parar de olhá-lo, parecia uma besteira fechar os olhos para uma imagem tão bonita. – Eu só vou pegar alguns travesseiros e já estou saindo, você precisa descansar. – Ele sorriu e acariciou meu rosto. Eu definitivamente não queria que ele me deixasse “descansar” sozinha. Ele ia se afastando quando eu disse:
- Jake.
- Que foi? – Ele se virou e me encarou.
- Fique. Fique comigo essa noite.
Quando adormeci, envolta o mais próximo que eu podia nos braços dele – ao contrário do que eu contava como certo – não sonhei. Pesadelo algum foi capaz de penetrar os escudos que nossos corpos formaram juntos. Na verdade, foi a noite mais tranquila que já tive na vida.
Fanfic escrita por Anna Grey.
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