Ataque
Uma claridade perolada transpassava o tecido claro e fino das cortinas, iluminando todo o quarto. O farfalhar das árvores do outro lado da rua era o som predominando naquela manhã fria e silenciosa. Meus olhos lacrimejavam de sonolência e da súbita claridade. Os lençóis me envolviam até os ombros e se enroscavam por entre meus braços e pernas, tornando difícil a movimentação. Desvencilhei um braço do emaranhado de lençóis e tateei a cama e os travesseiros atrás de mim. Estavam vazios e frios. Rapidamente me virei, tentando encontrar provas de que aquela noite não tinha sido um sonho. O travesseiro estava amarrotado e tinha o exato cheiro delicioso dele, assim como o lençól que se encontrava aos pés da cama. Tudo indicava que não era apenas um sonho. Me sentei, ainda encarando o lugar vazio ao meu lado, afastei meus cabelos do rosto e esfreguei os olhos. Então ele apareceu, seus passos silenciosos não denunciaram sua presença até vê-lo abrir a porta e adentrar o quarto como se fosse uma aparição. Vestia a mesma calça de malha e uma regata igualmente branca, mas havia uma diferença absurta em seu rosto e em sua expressão. Estava feliz, radiante e sereno, como uma brisa quente de primavera. Mas uma surpresa maior me fez arregalar os olhos para ele.
- Jake, o que houve com o seu cabelo? – Ele sorriu e passou a mão pelos fios curtos e arrepiados, negros como a noite.
- Fiquei entediado. Você dormiu metade do dia. – Ele sorriu mais abertamente, do jeito que ele costumava fazer quando me via.
- Que horas são? – Perguntei, meio perplexa e envergonhada, incapaz de desviar os olhos de seu rosto tão tranquilo.
- Quatro da tarde. – Ele se sentou na cama e colocou uma mecha de cachos atráz de minha orelha. – Fiz seu café da manhã, quer que eu traga aqui? – Eu o olhei, e senti minha mão afagar seus cabelos, inabilmente tozados e arrepiados.
- Porquê você cortou o cabelo? – Perguntei, ignorando sua oferta. Ele pareceu exitar por um momento, desviou o olhar para a janela e disse:
- É só que… se vamos caçá-los, bem, é mais prático pra mim. – Ele me olhou de esguelha, avaliando minha reação. Eu estava absorta demais à textura de sua pele, e isso salvou minha expressão de calmaria e sonolência. Pensei naquilo por um momento. “Vamos caçá-los”. Então ele tinha desistido de me levar de volta para meus pais? O que o fez mudar de idéia? Me lembrei então da noite anterior. A primeira vez que ataquei e me alimentei de humanos. Parecia uma memória turva em minha mente, um passado negro e distante daquela calmaria. De alguma forma o desespero da noite passada tinha se esvaído de mim, e só o que consegui sentir em reação as palavras de Jacob, foi uma súbita e inexplicável coragem. Sentia-me mais forte, mais capaz de chegar até o fundo daquela trama.
Jacob se levantou e me puxou com ele, de modo que fiquei em pé no colchão macio. Ele abraçou minha cintura e me colocou no chão, sempre sorrindo com tranquilidade. Me perguntei como ele estava lidando com aquilo e quando iríamos falar a respeito. Descemos as escadas de mãos dadas e eu observei melhor a casa que invadimos. As paredes e o piso eram constituídos da mesma madeira escura e avermelhada. A tapeçaria era antiga, mas bem cuidada. Os móveis tinham o mesmo tom marrom de todo o resto. A lareira era grande e ocupava boa parte da sala, os porta retratos que ocupavam seu console eram pequenos e emolduravam o mesmo rosto feminino. A casa era, em suma, aconchegante e bem arrumada, embora tivesse uma aura de solidão e abandono que impregnavam as paredes empoeiradas.
Jacob encheu uma tigela de cereais e leite e colocou em minha frente, satisfeito com seu trabalho. Eu encarei a tigela com um interesse menor que zero. O cheiro não era atrativo, assim como o gosto. Jacob me observava sentado a minha frente, enquanto comia sua segunda tigela de cereais. Ele se desculpou por não ter nada mais para servir e tagarelou sobre o clima. Forcei algumas colheradas e depois abandonei a tigela, quase intacta. Eu sabia por que não conseguia querer cereais. Eu tinha provado algo muito mais saboroso na noite passada, e seria difícil me livrar do desejo e da queimação em minha garganta. Até lá, toda comida humana teria gosto de areia. Mas aquele prazer era proibido para mim, e eu teria de superá-lo logo.
- Jake. – A necessidade de saber o que ele estava pensando superou meu medo de falar, e quanto mais cedo eu encarasse aquilo, mais cedo eu poderia continuar minha busca. Ele me olhou atônito. – Como você está? – Não consegui encontrar uma pergunta mais direta, minha garganta se fechava ao menor indício daquele assunto. Aquela era, obviamente, a pergunta que ele tentava evitar. Me olhou com um misto de pesar e vergonha, mas eu não sabia o que aquilo significava.
- Ness eu… – Ele ponderou por um momento, era aflitivo vê-lo assim, sem saber o que dizer. Esperei, olhando-o com calma. – Eu sinto muito. – Disse ele por fim. De fato não era o que eu esperava ouvir, mas antes que eu tivesse chance de perguntar ele continuou:
- Sinto muito que você tenha essa culpa nos ombros agora, e te conhecendo como conheço, eu sei que não vai adiantar nada eu dizer que não foi sua culpa. – Ele parou, sustentando meu olhar. Bem, ele tinha razão. Eu não deixaria que mais ninguém tomasse a culpa pelo que fiz, mas eu também não deixaria isso me afetar ao ponto de me mudar. Eu seguiria em frente com essa sombra me seguindo aonde quer que eu fosse, ela sempre estaria lá, e eu teria que aprender a viver com aquilo. Com o tempo, talvez eu pudesse olhar para tráz com alguma sensatez e enxergar tudo aquilo de um ângulo diferente. Mas agora não, eu não podia me acovardar e me lamentar por mais tempo. Coisas mais vitais e urgentes estavam acontecendo em minha volta, e eu não podia simplesmente ignorá-las. Essa conseção particular durou apenas o tempo de um abraço quente e renovador, ao qual eu desejei com todas as forças poder durar por toda minha vida.
***
O choque percorreu meu corpo como uma lâmina – fria e cega – deixando um rastro de dormencia por onde passava. Encarei mais atentamente aquele reflexo, não podia ser meu. Aquele espelho devia estar me gozando. Jacob entrou no quarto – já inteiramente vestido para a viajem – e estacou atráz de mim, com a expressão constrangida de uma criança que acaba de presenciar sua mãe descobrir uma traquinagem. Estávamos nos preparando para partir, fui ao quarto em que passei a noite para mudar de roupa e… Meu olhos, Deus, meus olhos estavam vermelhos! Era a prova concreta e absoluta de minha vergonha. Certamente passaria despercebido para os olhos humanos – era uma mudança muito sutil para ser perceptível a seus olhos tão limitados – mas com certesa era visível para nossos olhos. Me perguntei por quê Jacob não me avizou sobre as mudanças – sim, havia algo mais de diferente em mim. Minha pele, sempre mais corada que a dos meus pais, tinha agora um aspecto mais pálido que contrastava com a íris marrom avermelhada de meus olhos. Era estranho por quê – ao todo – eu me sentia a mesma. Meu coração ainda batia forte e veloz no peito, meu sangue ainda corria em minhas veias, eu ainda sentia sono, fome – apesar da sede ter aumentado drasticamente – ainda me sentia…humana, se é que eu ainda poderia me classificar assim depois dos últimos acontecimentos. Me virei e encarei Jacob, ainda boquiaberta com o susto.
- Jake, meus olhos… – Eu apontei para meu rosto. Era ridículo, Jacob certamente percebera a mudança um segundo após o acidente. – O quê…o que eu me tornei? – Não consegui refrear a pergunta temerosa que latejava em minha mente. Ele me olhou tristemente e afagou meu rosto com as pontas dos dedos.
- Você continua sendo a mesma. Continua sendo minha Nessie, meu amor. – Senti que perdia um pouco o fio da meada. Um sentimento bem mais forte pulsou naquele momento. Ele me amaria se eu me tornasse um monstro? Bem, ele ainda parecia o mesmo comigo, e isso, era mais do que eu podia desejar.
Arrumamos tudo o que foi possível salvar do incidente nas mochilas e apagamos os rastros de nossa estadia naquela casa. Enquanto nos preparávamos para partir – deixando absolutamente tudo no devido lugar – concordamos em ligar para Billy. Jacob estava achando estranho o silêncio. Ninguém estava nos procurando – pelo menos ninguém que tenha quatro patas – e meus pais certamente já estariam revirando cada metro quadrado da península de Olimpic à essa hora, porém, a tranquilidade e o silêncio era alarmante. Voltamos para a floresta ao crepúsculo. O vento frio e úmido castigava as árvores, corremos para o norte, onde – segundo Jacob – nós chegaríamos as florestas geladas de Vancouver, onde, supostamente, Zafrina deveria estar. Uma hora se passou enquanto corríamos pela escuridão da floresta, então, decidimos parar e cumprir o combinado. O telefone de Billy chamou cinco vezes, e uma voz grave e familiar atendeu.
- Alô. – Disse Billy.
- Pai, onde eles estão? – Jacob ignorou a emoção em seus olhos, nós não tínhamos tempo para bater papo.
- Jake? Que diabos vocês estão fazendo? Onde estão? – Billy continha a mesma emoção na voz, parecia alarmado.
- Pai, eu não tenho muito tempo. Me diga onde eles estão. – Insistiu Jacob.
- Quem? Os Cullens? Eles não apareceram por aqui, mas Charlie disse que Bella ligou para ele. Parece que estão todos na Flórida. – Billy esperou pela resposta, mas nem eu nem Jacob sabíamos o que dizer – ou pensar.
- E o que eles foram fazer lá? – Perguntou Jacob depois de uma longa pausa.
- Jake, eu acho que a mãe da Bella… morreu. – Minha boca de abriu num espanto mudo. Levei as mãos à testa para impedir que meu crânio se partisse. Jacob me olhou, refletindo minha expressão de aturdimento. Mais um longo silêncio se seguiu. Estávamos – ambos – absorvendo a notícia.
- Jake? Ainda está aí? – Chamou a voz grave de Billy.
- Sim. É, Pai, escute. Eu e Nessie precisamos fazer uma coisa. Mais os sangue…os Cullens não podem saber. Ainda não. Nós estamos bem, então não precisa mandar o Sam vir atráz de nós nem nada disso. Eu ligo assim que puder, só não… – Ele bufou. – Não surte ok? Eu vou ficar bem, nós…ficaremos bem.
- Jake…
- Tchau, pai. – Jacob desligou o celular e me encarou, esperando que eu dissesse o que faríamos agora. Bem, eu não tinha resposta para isso. Se Billy estava certo, meus pais estavam na Flórida enterrando Renée. Um impulso cego começou a crescer dentro de mim. Eu precisava estar lá. Precisava consolar minha mãe, Charlie… Precisava me despedir de minha avó humana. Mas nada disso seria possível. Eu precisava aproveitar essa oportunidade para tentar ir mais a fundo naquela lama, e descobrir o que diabos estava acontecendo comigo. Droga, até onde eu iria nessa minha busca insensata? E se não houvesse nada? Como eu iria explicar – acima de tudo para mim mesma – todas as consequências que atraí para mim? Até alí só o que eu tinha conseguido era um monte de nada – claro, isso sem contar o fato de eu ter matado três humanos. Comecei a andar em circulos, tentando clarear as idéias. Jacob me observava silencioso, absorto em seus próprios pensamentos apavorados. Eu não podia decepcioná-lo de novo. As esperanças já iam se esvaindo de mim, sentia-me como um galão furado. A noite estava mais calma agora, o vento tinha diminuído a velocidade para um leve farfalhar, a floresta estava muda. Como o auditório de um espetáculo bizarro e sinistro. Eu podia sentir a tensão no ar, o vento trazendo uma brisa adocicada do sul, o cheiro me fez lembrar…
Estaquei. Aterrorisada e paralisada à meio passo. Eu conhecia aquele cheiro. Era cheiro de vampiro. Meus olhos varreram a escuridão à minha frente, deixei meus ouvidos buscarem sons e ruídos a quilômetros na noite. Todos os músculos de meu corpo se retesaram, esperando – anciando pelo ataque. Meu coração martelava tão ruidosamente que chegava a atrapalhar minha concentração. Olhei em direção a Jacob, estava imerso em seus pensamentos, distraído – uma presa perfeita. A brisa que trouxera aquele cheiro até mim ainda não o tinha alcançado.
- Jake. – Ele me olhou aturdido com meu tom de voz.
- O quê? – Ele respondeu com o mesmo nervosismo latente em suas cordas vocais.
- Temos companhia. – Ele inspirou o ar e no mesmo instante vi seu corpo inteiro tremer e se retesar – um reflexo mais intenso do meu próprio corpo. Ninguém falou, estávamos recolhendo as informações que precisávamos. Eram dois, o rastro vinha do sul e ia para o leste. E era fresco. Uma, duas horas talvez.
- Não reconheço o cheiro. Será que são só nômades? – Eu perguntei, enquanto seguíamos o rastro pela floresta. Mas eu sinceramente não acreditava que se tratava de uma coincidência. Não alí. As chances de esbarrarmos aleatóriamente com os de nossa espécie eram muito poucas.
- Não. Um deles não me é estranho. Mas preciso chegar mais perto pra ter certeza. – Jacob mantinha-se à frente, seguindo com habilidade o rastro entre as árvores. Ele parou na sombra de um tronco grosso o suficiente para esconder nós dois e me puxou pelos ombros para junto dele. Olhou por sobre meu ombro e sussurrou:
- Preciso me transformar, sou melhor rastreador como lobo. Fique perto de mim. – Os olhos negros e semicerrados de Jacob vasculhavam freneticamente os cantos escuros à nossa volta. Havia alguma coisa naquela expressão que me dizia que algo o incomodava profundamente – além, é claro, de termos compania.
- O que é Jake? – Perguntei, atônita. Ele me olhou aflito, ainda atento à todo e qualquer movimento à nossa volta e disse:
- Reconheço o cheiro Ness. A última vez que senti esse cheiro foi na clareira, quando os sanguessugas italianos vieram atráz de você. – Ele parou. Um tremor violento sacudiu seu tronco, e ele sibilou: - Eles pararam. Estão nos esperando alcançá-los. – Outro tremor. – Vou mudar.
Um ruído abafado cortou a noite e o lobo castanho avermelhado saiu das sombras. Ele me fez seguir sempre atráz dele. A cada passo o cheiro de intensificava pelo caminho. Os pêlos da lombar do Jacob-lobo estavam eriçados, mas havia uma frieza e ponderação que o deixavam ainda menos humano e mais lobo. Suas grandes patas tocavam o solo com uma delicadeza felina, as orelhas em pé, captando o menor dos ruídos. Eu o seguia de perto, meus sentidos em pleno funcionamento. Eu nunca estive numa caçada como esta, nunca tinha tido a chance de usar minhas habilidades, e agora eu podia sentir a excitação crescer em meus ossos, a adrenalina e a expectativa fluindo em minhas veias. O cheiro do inimigo entrando por minhas narinas e transformando meu corpo numa máquina de morte. A autopreservação misturando-se com o desejo de vingança.
Um grunhido ameaçador escapou da enorme garganta do lobo a minha frente. Jacob circundou as árvores, descrevendo um círculo pelo espaço entre a vegetação. Eles estavam alí, parados, os braços cruzados no peito, uma expressão de satisfação nos rostos pálidos.
- Ora ora ora. E não é que nos encontramos de novo monstrinha. – Félix sorriu para mim, e era como se não tivesse passado nenhum dia desde aquela manhã em Forks.
Fanfic escrita por Anna Grey.
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